O IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados é tributo federal não-cumulativo, de caráter seletivo, que tem previsão constitucional no art. 153, IV da CF/1988. O fato gerador do IPI pressupõe que a operação onerada pelo referido imposto tenha por objeto um produto que tenha sido industrializado.
O IPI, além de incidir nas operações que têm por objeto produtos industrializados no país, também incide sobre operações que tenham por objeto produtos industrializados no estrangeiro (IPI/Importação). Vale dizer, nesta hipótese a legislação não tributa uma operação com produtos industrializados no país, mas no exterior. Isto ocorre como forma de proteção à indústria brasileira, visto que o produto fabricado no Brasil sofre a incidência do IPI.
Por sua vez, o fundamento legal do IPI se encontra no art. 46 e 51 do CTN e se torna devido, dentro de outras hipóteses: (i) quanto às importações (IPI-Importação) no momento do desembaraço aduaneiro, (ii) quanto aos produtos nacionais, na saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51 do CTN. Eis o teor do artigo 46 do CTN:
“Art. 46. O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador:
I – o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;
II – a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51;”
Desta forma, nos termos do artigo 46, I do CTN, quando um importador adquire produtos industrializados do exterior, ao desembaraçá-los, é deflagrado o fato gerador do IPI/Importação, do que resulta a necessidade do pagamento do imposto.
Por sua vez, o parágrafo único do artigo 51 do CTN mencionado no inciso II do artigo 46 do CTN elenca como hipótese de incidência do IPI a saída do produto industrializado dos estabelecimentos dos importadores, industriais, comerciantes ou arrematantes, in verbis:
“Art. 51. Contribuinte do imposto é:
(…)
Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante”.
Da análise conjunta dos artigos 46, II e 51 do CTN se extrai que, ao mencionar que o IPI recairá sobre produtos industrializados na operação de saída produto dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51 do CTN, a lei apontou qualquer estabelecimento importador, industrial, comerciante ou arrematante, para indicar que o fato gerador do IPI é a realização de operações com produtos industrializados, sejam os contribuintes importadores, indústrias, comerciantes ou arrematantes.
Em outras palavras, a expressão “saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51” (inciso II do artigo 46 do CTN) não tem relação com a hipótese prevista no inciso I do artigo 46 do CTN, pois somente o inciso I se refere ao produto de procedência estrangeira.
Tanto é assim, que quando a Lei nº 4.502/64 regulou a matéria em seu artigo 2º estabeleceu que o aspecto temporal do fato gerador do IPI se configura: (i) quanto aos produtos industrializados de produção nacional na “saída do respectivo estabelecimento produtor”. (ii) “quanto aos produtos de procedência estrangeira o respectivo desembaraço aduaneiro”.
Contudo, o STJ que havia adotado o entendimento acima, alterou a sua posição. Não há ainda disponibilização completa da decisão, mas da notícia veiculada no site do STJ, se constata que as razões de decidir foram as seguintes:
“…quando se fala em importação de produto, a primeira incidência está contida no artigo 46 do Código Tributário Nacional (CTN): o desembaraço aduaneiro. A respeito desta, não há disputa. A segunda incidência se dará no momento em que o importador promove a saída do produto de seu estabelecimento para revenda”.
“…não se trata de bitributação (bis in idem), pois a lei elenca dois fatos geradores distintos: o desembaraço aduaneiro, proveniente da operação de compra do produto do exterior, e a saída do produto industrializado do estabelecimento importador equiparado a estabelecimento produtor”.
“…os estabelecimentos que revendem produtos importados se equiparam, para fins de incidência do imposto, a estabelecimentos industriais”
Pois bem, o STJ entendeu que o artigo 46, incisos I e II do CTN, interpretado em conjunto com o artigo 51 parágrafo único do mesmo diploma, autoriza a tributação pelo IPI, tanto no desembaraço aduaneiro, como na saída do estabelecimento, mesmo que tais produtos não sejam submetidos a qualquer processo de industrialização. Decidiu ainda que isso não configuraria “bis in idem”
Para esclarecer, “bis in idem” ocorre quando uma pessoa jurídica de direito público tributa mais de uma vez o mesmo sujeito passivo sobre o mesmo fato gerador.
Partindo dessa interpretação do CTN pela Corte Superior, se abre a competência do STF para julgar a matéria. Neste ponto se aconselha a aqueles que têm ações que discutem o tema, se ainda não o fizeram, a começar a “prequestionar” a matéria constitucional, especialmente na fase de recurso (apelação e contra-razões).
E isto porque, se o CTN prevê a incidência do produto importado no desembaraço aduaneiro e na saída do estabelecimento do importador, como entendeu o STJ, cabe a STF indicar se o CTN é inconstitucional, porque no caso estaria ocorrendo confisco, vedado pela CF (150, IV)
Além disso, a matéria é muito importante para a jurisdição constitucional no campo tributário, pois trata dos limites para definição das hipóteses de incidência do IPI. Muito embora o STJ tenha consignado que no caso não há “bis in idem”, a análise da matéria compete ao STF, pois temas como “bis in idem” e “bitributação” são temas de ordem constitucional.
Cabe também ao STF analisar se CTN teria extrapolado o comando dos artigos 146, III. “a” e 153, IV da CF:
O artigo 146, III, “a” da CF/88 enuncia que cabe à lei complementar: estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes. Por sua vez, o art. 153, IV da CF estabelece que compete à União instituir impostos sobre produtos industrializados.
O Código Tributário Nacional, recepcionado como lei complementar pela Carta de 1988, no que não se mostre com esta incompatível, trata do IPI (imposto discriminado na constituição) estabelecendo, dentre outros aspectos, o seu fato gerador.
Se o CTN determina que o produto proveniente do exterior recaia sobre o produto importado no desembaraço aduaneiro (popularmente falando na entrada) e na saída do estabelecimento do importador, conforme interpretação do STJ, cabe ao STF decidir se a CF autorizou que sobre produto industrializado que provêm do exterior, o IPI, pode recair duas vezes o IPI sem que ocorra nenhuma industrialização.
Nesse sentido se transcreve ementas do E. STF julgando casos em que uma lei prevê situações que podem se configurar “bis in idem”. Nessas hipóteses a análise da existência do “bis in idem” cabe a Suprema Corte, conforme reconhecido em repercussão geral e em julgamento de recurso extraordinário:
“TRIBUTO. Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. Inclusão do montante do imposto em sua própria base de cálculo. Princípio da vedação ao “bis in idem”. TAXA SELIC. Aplicação para fins tributários. MULTA. Fixação em 20% do valor do tributo. Alegação de caráter confiscatório. Repercussão geral reconhecida. Possui repercussão geral a questão relativa à inclusão do valor do ICMS em sua própria base de cálculo, ao emprego da taxa SELIC para fins tributários e à avaliação da natureza confiscatória de multa moratória”. (RE 582461 RG, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, julgado em 22/10/2009, DJe-022 DIVULG 04-02-2010 PUBLIC 05-02-2010 EMENT VOL-02388-06 PP-01160 )
“Recurso extraordinário. Tributário. Contribuição Previdenciária. Artigo 22, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com a redação dada pela Lei nº 9.876/99. Sujeição passiva. Empresas tomadoras de serviços. Prestação de serviços de cooperados por meio de cooperativas de Trabalho. Base de cálculo. Valor Bruto da nota fiscal ou fatura. Tributação do faturamento. “Bis in idem”. Nova fonte de custeio. Artigo 195, § 4º, CF. 1. O fato gerador que origina a obrigação de recolher a contribuição previdenciária, na forma do art. 22, inciso IV da Lei nº 8.212/91, na redação da Lei 9.876/99, não se origina nas remunerações pagas ou creditadas ao cooperado, mas na relação contratual estabelecida entre a pessoa jurídica da cooperativa e a do contratante de seus serviços. 2. A empresa tomadora dos serviços não opera como fonte somente para fins de retenção. A empresa ou entidade a ela equiparada é o próprio sujeito passivo da relação tributária, logo, típico “contribuinte” da contribuição. 3. Os pagamentos efetuados por terceiros às cooperativas de trabalho, em face de serviços prestados por seus cooperados, não se confundem com os valores efetivamente pagos ou creditados aos cooperados. 4. O art. 22, IV da Lei nº 8.212/91, com a redação da Lei nº 9.876/99, ao instituir contribuição previdenciária incidente sobre o valor bruto da nota fiscal ou fatura, extrapolou a norma do art. 195, inciso I, a, da Constituição, descaracterizando a contribuição hipoteticamente incidente sobre os rendimentos do trabalho dos cooperados, tributando o faturamento da cooperativa, com evidente “bis in idem”. Representa, assim, nova fonte de custeio, a qual somente poderia ser instituída por lei complementar, com base no art. 195, § 4º – com a remissão feita ao art. 154, I, da Constituição. 5. Recurso extraordinário provido para declarar a inconstitucionalidade do inciso IV do art. 22 da Lei nº 8.212/91, com a redação dada pela Lei nº 9.876/99”. (RE 595838, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 23/04/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-196 DIVULG 07-10-2014 PUBLIC 08-10-2014)
Além disso, o STJ apreciou apenas uma parte da questão. De fato, existem algumas hipóteses em que a exigência do IPI é incabível porque os importadores efetuam as importações de produtos que tem similares nacionais de países signatários do General Agreement on Tariffs and Trade – GATT, do Tratado de Montevidéu de 1980, que constituiu a Associação Latino-Americana de Integração – ALADI, e do Tratado de Assunção, que constituiu o Mercado Comum do Sul – MERCOSUL, todos recepcionados pela legislação pátria.
Ocorre que os mencionados tratados adotaram o princípio da não-discriminação do tratamento fiscal no que concerne às relações de comércio internacionais. O princípio da não-discriminação do tratamento fiscal veda o tratamento fiscal discriminatório entre as partes signatárias do tratado internacional, de forma a evitar tratamentos fiscais menos favoráveis em relação ao comércio internacional, dentre outras hipóteses.
Em vista disso, a exigência de IPI na revenda de bens originários de País signatário do GATT, ALADI e MERCOSUL que tenham similar nacional, não pode sofrer tratamento diferenciado do que o aplicado ao produto nacional. Contudo, ao pagar o IPI duas vezes, na importação e na revenda, os produtos importados estão tendo tratamento mais desfavorável que o produto nacional, que sofre a incidência do IPI apenas uma vez.
Esta questão ainda não foi apreciada nem pelo STJ e tampouco pelo STF. No caso, compete ao STF analisar a questão, conforme se extrai da decisão do STF, que reconheceu a repercussão geral em matéria que envolvia o tema. Abaixo destaco um trecho do voto do Ministro Marco Aurélio
“A celebração de um acordo internacional em matéria tributária tem efeitos que transcendem os interesses localizados de entes federados e contribuintes individuais, pois, nessas hipóteses, a União atua em nome de toda a Federação (e.g., o estabelecimento de isenções de tributos de competência de outros entes federados; c.f., por todos, o RE 543.943-AgR, rel. min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe de 15.02.2011).
Assim, os acordos internacionais em matéria tributária projetam expectativas legítimas para Estados, instituições e empresas estrangeiras que, se frustradas, podem expor toda a Nação a situações delicadas no plano internacional (cf., e.g., os temores pelo risco de retaliação comercial na OMC, presentes na manifestação da União apresentada no julgamento do RE 564.413, rel. min. Marco Aurélio, Pleno, DJ e de 03.12.2010, agora repetidos em razão do aumento do IPI para veículos importados).
Como a Constituição é a base imediata tanto da competência tributária como das regras que regem a conduta nacional perante os demais Estados soberanos, entendo que a discussão sobre a violação do GATT tem alçada constitucional
Ademais, lembro que esta Corte já havia firmado jurisprudência em caso que também envolvia o GATT (À MERCADORIA IMPORTADA DE PAÍS SIGNATÁRIO DO GATT, OU MEMBRO DA ALALC, ESTENDE-SE A ISENÇÃO DO IMPOSTO DE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS CONCEDIDA A SIMILAR NACIONAL – Súmula 575/STF).” (Voto proferido no RE 627280 RG).
Desta forma há chances do STF conhecer a matéria e quiçá reverter o entendimento do STJ.
Observação final.
Alguns colegas tem comentado comigo que o STF já deixou de apreciar o tema em outras oportunidades. Destaco que pesquisei algumas decisões do STF antes de escrever o post e constatei que a maioria dos recursos extraordinários não foram julgados porque não havia prequestionamento da matéria constitucional, ou discutiam a interpretação do CTN e normas infra constitucionais. A proposta não é mais discutir a interpretação do CTN, pois o STJ já o fez. Ou seja, partindo do pressuposto que o CTN realmente prevê a incidência do IPI importação duas vezes, no desembaraço e na revenda conforme interpretou o STJ, cabe ao STF julgar se esta “disposição do CTN” não estaria ferindo a CF. Vale dizer. A CF autorizou a lei complementar (CTN) instituir o IPI no desembaraço aduaneiro e na revenda? Em outras palavras. Revenda é fato gerador de IPI? A CF deu essa autorização?
A Autora é advogada, sócia da Nasrallah Advocacia, formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós Graduada em Direito Tributário pelo IBET – USP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT, Integrou a Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/SP em 2018/2019. Membro da Associação dos Advogados de São Paulo. Atua no contencioso judicial e administrativo e na consultoria tributária e é consultora CEOlab.