O Estado de São Paulo iniciou este ano uma estratégia agressiva para cobrar IPVA incidente sobre veículos licenciados em outros Estados.
O procedimento consiste no seguinte. O Fisco paulista cruza informações com o banco de dados da Receita Federal e com do DENATRAN. A Receita Federal informa o endereço indicado na declaração de imposto de renda do contribuinte. Pois bem, se o fisco paulista constata que o contribuinte declara no imposto de renda que seu domicílio fica em São Paulo e, por outro lado, o DENATRAN informa que este mesmo contribuinte tem veículos registrados e licenciados em outro Estado, lavra auto de infração exigindo IPVA do contribuinte.
Ocorre que, com esta conduta indiscriminada, o fisco paulista acaba exigindo IPVA ilegalmente, pois o fato de constar nos arquivos da Receita Federal que o contribuinte tem endereço em São Paulo, por si só, não é motivo bastante a autorizar a lavratura de autos, pois a lei admite que uma pessoa tenha diversos domicílios.
O Código Civil, que se aplica subsidiariamente ao direito tributário, estabelece que se a pessoa tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas (artigo 71).
Por sua vez, o Código de Trânsito Brasileiro estabelece que os veículos automotores deverão ser registrados perante o órgão executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, no Município de domicílio ou residência de seu proprietário (Lei nº 9.503/97, artigo 120). Assim, a única conclusão possível é que se o contribuinte tem residências em estados diferentes, pode ter veículos licenciados nos diversos estados em que reside devendo pagar IPVA ao estado onde o veículo está registrado.
O Código Tributário Nacional, que tem força de lei complementar, também trata de domicílio estabelecendo que, se o contribuinte não indicou seu domicílio tributário, na forma da legislação aplicável, considera-se como tal a sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o local onde exerce sua atividade com habitualidade (art. 127, I).
Assim, quem deve indicar o domicílio é o contribuinte (e não o fisco) e caso ele não o indique, será o da sua residência habitual, ou sucessivamente onde exerça suas atividades. Conclusão: se o contribuinte tem residência habitual e atividades em duas cidades, pode eleger qualquer uma delas, ou mesmo, as duas para registrar e licenciar seus veículos.
Contudo, para “legitimar” a lavratura dos autos de infração comentados, o Estado de São Paulo criou lei estadual tratando do IPVA de forma diferente à tratada das normas gerais trazidas pelo CTN. O artigo 4º da Lei Estadual 13.296/08 de São Paulo repete as normas do CTN, acrescentando novas regras no § 2º do artigo 4º.
De fato, a lei estadual resolveu “solucionar” a questão da pessoa que tem diversas residências para fins de recolhimento de IPVA. Estabeleceu que, no caso de pessoa com múltiplas residências, presume-se como domicílio tributário para fins de pagamento do IPVA o local onde, cumulativamente, possua residência e exerça profissão ou, caso possua residência e exerça profissão em mais de um local, o endereço constante da Declaração de Imposto de Renda. Vale dizer, a Lei Estadual retirou a possibilidade de eleição de domicílio tributário pelo contribuinte, na forma como determinada pelo CTN.
Ocorre que a lei estadual tem vícios e, portanto, é inaplicável quanto a esta questão, pois:
De acordo com o artigo 146, I da CF/88 “cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”. Destaca-se que as normas que tratam de domicílio tributário são regras diretamente relacionadas à competência dos entes tributantes.
Em vista da inexistência de lei complementar que trate do IPVA, se aplica no que couber o Código Tributário Nacional, diploma que foi recepcionado pela Constituição com força de lei complementar.
E nem poderia ser de outra forma, pois se cada estado pudesse tratar das regras gerais de tributação, inclusive de competência tributária, se instituiria um verdadeiro caos tributário, com o risco de que cada Estado crie leis exigindo para si, tributos devidos a outros estados.
Exatamente por isso, as regras gerais somente podem ser tratadas por lei complementar, elaboradas pelo Congresso Nacional e para sua aprovação precisam da maioria absoluta dos votos das duas Casas (Senado Federal e Câmara dos Deputados). A Constituição Federal não atribuiu ao Legislativo Estadual a possibilidade de tratar da competência tributária para exigir o IPVA. Repetindo, isto não é aleatório, a Constituição Federal busca impedir que a legislação dos tributos estaduais seja diferenciada em cada Estado, evitando situações danosas para a economia do país, como por exemplo, as famosas guerras fiscais e a bitributação que onera o contribuinte.
Além de não ser o veículo legislativo adequado para tratar do tema (o que leva à inconstitucionalidade da Lei Estadual 13.296/08) não se pode olvidar que o domicílio tributário para fins de imposto de renda, não guarda qualquer semelhança com o domicílio tributário para fins de IPVA.
O imposto de renda incide sobre a disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza e não tem qualquer relação com o estado da federação de residência do contribuinte, pois se trata de imposto federal. Para fins de imposto de renda, pouco importa se o Autor reside em São Paulo ou outro estado da federação, ou mesmo se tem dupla residência, pois o ente tributante sempre será o mesmo.
Quanto ao IPVA, é um tributo estadual devido anualmente pelos proprietários de automóveis de passeio ou utilitários, caminhonetes de carga, motocicletas, ônibus, caminhões e tem como fato gerador a propriedade de veículo. Exatamente por isso, o domicílio tributário para fins de IPVA eleito pelo contribuinte deve ser ligado à coisa, à sua localização e ao local da residência do proprietário do veículo, sendo o critério do imposto de renda absolutamente inadequado.
A Autora é advogada, sócia da Nasrallah Advocacia, formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós Graduada em Direito Tributário pelo IBET – USP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT, Integrou a Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/SP em 2018/2019. Membro da Associação dos Advogados de São Paulo. Atua no contencioso judicial e administrativo e na consultoria tributária e é consultora CEOlab.