Conforme já comentei em vários post, as normas constitucionais são hierarquicamente superiores porque trazem as regras fundamentais da nação, além de regular os direitos dos indivíduos e cidadãos. Ademais, a Constituição Federal submete todos os órgãos do Estado aos seus comandos.
Celso Ribeiro Bastos sintetizou em poucas palavras o objetivo da Constituição mencionando: “se perguntarmo-nos qual o objeto fundamental com que se defronta uma constituição vamos encontrar uma só resposta: a regulação jurídica do poder” (Comentários à constituição do Brasil, Ed. Saraiva, 1988, v. 1, fls. 132 – co-autoria Ives Granda Martins).
Vale dizer, a Constituição regulamenta o “poder” subordinando-o às normas jurídicas, estabelecendo as linhas mestras, as diretrizes do sistema legal, indicando os caminhos que devem ser trilhados pela sociedade e obrigatoriamente adotados pelos poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário). A Constituição cria limites inclusive ao poder de tributar, estabelecendo o que se chama de “segurança tributária”. E isto é assim, para evitar que o poder não descambe para a arbitrariedade.
Ocorre que na prática a Constituição Federal tem sido desrespeitada sistematicamente pelos poderes constituídos. Neste post, vou abordar fatos que estão ocorrendo nos Municípios brasileiros.
Estabelece o artigo 146, III, letra “a” da CF que “cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”.
O ISS é um imposto discriminado na Constituição no artigo 156. Assim, a única interpretação possível é que a Constituição Federal determinou que somente a lei complementar pode determinar a base de cálculo do ISS.
Porque lei complementar? Ora, a lei complementar é elaborada pelo Congresso Nacional e para ser aprovada precisa da maioria absoluta dos votos das duas Casas (Senado Federal – integrado por 81 Senadores e Câmara dos Deputados integrada por 513 deputados federais). Portanto, para ser confirmada, uma lei complementar deve ser aprovada no mínimo por 41 senadores e 257 deputados.
Como se vê, a CF não deixou ao Legislativo Municipal (vereadores) e, tampouco, ao Executivo Municipal (prefeitos, secretários, etc), a possibilidade de tratar da base de cálculo do ISS, razão pela qual atribuiu esta competência ao Congresso Nacional.
Isto não é aleatório, com esta regra a Constituição Federal busca evitar que a legislação do ISS seja diferenciada em cada município, evitando situações danosas para a economia do país, como por exemplo, as famosas guerras fiscais. Se os Municípios pudessem alterar a base de cálculo do ISS, poderiam acabar criando incentivos fiscais desarrazoados o que levaria à renúncia de receita municipal tão perniciosa ao desenvolvimento.
Também poderia acontecer a instituição, pelos Municípios, de base de cálculo do ISS alta e irreal (com o objetivo de arrecadar mais), o que levaria a uma estagnação da economia e alta de preços.
Pois bem, para cumprir o comando constitucional e com a finalidade, dentre outras, de estabelecer a base de cálculo do ISS, foi editada a Lei Complementar 116/2003, que estabeleceu no seu artigo 7º que a “base de cálculo do imposto é o preço do serviço”.
Não obstante, boa parte dos Municípios criaram leis municipais modificando a base de cálculo do ISS de maneira contrária à Constituição e à Lei Complementar. Para ficar mais claro, vou citar a legislação do Município de São Paulo, que se aplica igualmente a situações similares em outros municípios.
A Lei do Município de São Paulo nº 13.701/03 determina no § 3º do seu art. 14:
“Art. 14. A base de cálculo do Imposto é o preço do serviço, como tal considerada a receita bruta a ele correspondente, sem nenhuma dedução, excetuados os descontos ou abatimentos concedidos independentemente de qualquer condição.
(…)
§ 3º O preço mínimo de determinados tipos de serviços poderá ser fixado pela Secretaria de Finanças e Desenvolvimento Econômico em pauta que reflita o corrente na praça”.
Como se vê, a Lei Municipal “atribuiu” ao Secretário de Finanças e Desenvolvimento Econômico, a competência para criar uma base de cálculo fictícia para o ISS estabelecendo um “preço mínimo” de serviço.
Causa espanto ver que uma atribuição específica do Congresso Nacional, formado por representantes eleitos pelo povo e que somente pode ser aprovada por maioria absoluta (repita-se: 41 senadores e 257 deputados), seja “delegada” por ente absolutamente incompetente para tanto (Câmara Municipal), a uma pessoa indicada pelo Prefeito Municipal. Vale dizer, foi atribuído inconstitucionalmente ao Secretário de Finanças poder que somente pode ser exercido pela maioria absoluta do Congresso Nacional.
Em vista desta “delegação”, sobreveio a Portaria da Secretaria de Finanças nº 151, de 28/06/2008 fixando base de cálculo para fins de cálculo do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS, consubstanciada em pauta fiscal para aplicação aos serviços de construção civil, a saber, preço por metro quadrado que deve ser utilizado na apuração do valor mínimo de mão-de-obra aplicada na construção civil.
Isso quer dizer, que a base de cálculo do ISS é previamente fixada, desconsiderando o preço do serviço efetivamente prestado. Tal procedimento, além de contrariar a Constituição Federal e a Lei Complementar 116/2003, pelas razões acima mencionadas, contraria entendimento do STJ, que apreciou questão muito similar relativa ao ICMS e decidiu ser impossível, segundo as regras do ordenamento jurídico tributário, erigir pautas fiscais, pautas de preços ou de valores fixados mediante Portarias, como contendo elementos materiais determinantes da base de cálculo de imposto.
Tão forte o entendimento do STJ que acabou sendo editada a Súmula 431 que enuncia: “É ilegal a cobrança de ICMS com base no valor da mercadoria submetido ao regime de pauta fiscal”.
Ainda que pudessem ser afastados os argumentos acima, há que se considerar que base de cálculo arbitrada, viola o artigo 148 do CTN, que só autoriza arbitramento se os elementos fornecidos pelo contribuinte não merecerem fé e impõe o respeito ao contraditório.
Em vista disso, o uso de pauta fiscal para a fixação de um valor mínimo a ser recolhido a título de ISS é inconstitucional e ilegal, por não existir autorização constitucional ou legal para tanto e porque ausente qualquer relação entre a base de cálculo e o real preço do serviço prestado.
As arbitrariedades municipais não se restringem a estes aspectos. De fato, diversos municípios têm condicionado a expedição do “habite-se” ao pagamento do ISS incidente sobre a obra e da taxa de vistoria. Contudo, tal exigência configura ilegítima sanção política, pois os Municípios têm instrumento legal próprio para a cobrança de tributo, qual seja, o processo de execução fiscal.
Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal já mencionou diversas vezes que o Poder Público não pode utilizar meios indiretos de coerção, convertendo-os em instrumentos de acertamento da relação tributária, para, em função deles – e mediante interdição ou grave restrição ao direito dos contribuintes, constrangê-los a pagar tributos, pois se trata de comportamento estatal arbitrário e inadmissível, dando ensejo à edição das Súmulas 70, 323 e 547 daquela Corte.
Ademais, vincular a expedição de “habite-se” ao pagamento do ISS desvirtua o objetivo do exercício desse poder de polícia, ou seja, atestar a regularidade da obra executada com as regras edilícias e sua segurança.
A Autora é advogada, sócia da Nasrallah Advocacia, formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós Graduada em Direito Tributário pelo IBET – USP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT, Integrou a Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/SP em 2018/2019. Membro da Associação dos Advogados de São Paulo. Atua no contencioso judicial e administrativo e na consultoria tributária e é consultora CEOlab.