Segundo o artigo 155, IX, “a”, da CF/88, o ICMS incidirá “sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, (…) cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria, …”
A Lei Complementar nº 87/96, por sua vez dispõe no artigo 11, I, d, que o local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável é, tratando-se de mercadoria ou bem importado do exterior, o do estabelecimento onde ocorrer a entrada física”
A expressão “estabelecimento destinatário da mercadoria” vem sendo interpretada pela doutrina e pela jurisprudência como “estabelecimento do importador”.
O importador, por sua vez, é definido como aquele que realiza o negócio internacional, paga o preço combinado, assume direitos e obrigações, realiza o desembaraço aduaneiro. Segundo Roque Carrazza, o local do desembaraço da mercadoria é irrelevante para caracterizar a titularidade ativa do ICMS na importação, sendo devido o ICMS ao “Estado-membro onde está situado o estabelecimento importador do bem, ainda que o desembaraço se dê em outro Estado-membro.”(ICMS, 4a. ed. pag. 54).
De acordo com a doutrina, a entrada física da mercadoria prevista na LC 87/96 perde significado se ela não ocorrer no estabelecimento destinatário da mercadoria, ou seja, no estabelecimento do importador. Do mesmo modo, a venda posterior da mercadoria, ainda que em operação triangular, ou seja, com entrega direta ao comprador, não interfere na sujeição ativa, que continua sendo do Estado onde tem domicílio o importador.
No Recurso Extraordinário nº 299.079, o Supremo Tribunal Federal analisou a seguinte situação fática: uma empresa sediada no Estado de Pernambuco realizou a importação de álcool anidrido – produto isento do referido imposto naquela localidade – para vendê-lo à Petrobrás, com sede no Estado do Rio de Janeiro. Porém, visando à economia e praticidade, preferiu que a mercadoria fosse entregue, diretamente, à Petrobrás de Duque de Caxias (RJ), local onde ocorreu o desembaraço aduaneiro. O Estado do Rio de Janeiro recorreu ao Supremo contra acórdão do Tribunal de Justiça local que entendera ser o Estado de Pernambuco o beneficiário do ICMS, sustentando que o verdadeiro destinatário da mercadoria importada era a Petrobrás estabelecida no Estado Rio de Janeiro.
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal negou provimento ao recurso extraordinário por entender que o sujeito ativo da relação tributária é o Estado de Pernambuco, uma vez que, em se tratando de operação iniciada no exterior, o ICMS é devido ao Estado em que está localizado o destinatário jurídico do bem, isto é, no caso, a empresa localizada em Pernambuco, que adquiriu o produto, para posteriormente vendê-lo à Petrobrás, no Rio de Janeiro.
Saliente-se que, nesse caso, o Supremo considerou que a respeito dos elementos fáticos não havia divergência entre as partes: o álcool foi importado pela empresa estabelecida no Estado de Pernambuco, mas foi desembarcado no porto do Estado do Rio de Janeiro, sendo recebido pela Petróleo Brasileiro S/A, a quem foi vendido pela importadora.
O Ministro Relator, Carlos Britto, concluiu que ICMS incidente na importação de mercadoria não tem como sujeito ativo da relação jurídico-tributária o Estado onde ocorreu o desembaraço aduaneiro, mas o Estado onde situado o sujeito passivo do tributo, qual seja, aquele que promoveu juridicamente o ingresso do produto.
O Ministro Marco Aurélio comentou no seu voto o seguinte:
“No caso, trata-se de tributo sobre a importação, e não possuindo a recorrida estabelecimento no Estado do Rio de Janeiro, mas em Pernambuco, a este cabe o imposto. Impossível é valorizar-se o desembarque de modo a se afastar do cenário jurídico a norma constitucional definidora do Estado titular do tributo. Assim, somo meu voto ao do relator e desprovejo o extraordinário, ressaltando mais uma vez que a conclusão seria diversa se a recorrida fosse proprietária de estabelecimento no destino, no Estado do Rio de Janeiro. Repito que o negócio jurídico subseqüente à importação, que foi a venda à Petrobrás, não repercute na relação tributária primitiva.”
O acórdão restou assim ementado:
“EMENTA.RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS. ICMS. IMPORTAÇÃO. SUJEITO ATIVO. ALÍNEA “A” DO INCISO IX DO § 2O DO ART. 155 DA MAGNA CARTA. ESTABELECIMENTO JURÍDICO DO IMPORTADOR.
O sujeito ativo da relação jurídico-tributária do ICMS é o Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário jurídico da mercadoria (alínea “a” do inciso IX do § 2º do art. 155 da Carta de Outubro); pouco importando se o desembaraço aduaneiro ocorreu por meio de ente federativo diverso.
Recurso extraordinário desprovido.”
Ao analisar um caso decorrente de uma ação anulatória de crédito tributário constituído por auto de infração, cuja acusação era a falta de recolhimento do ICMS tendo em vista o recebimento de mercadorias importadas por empresa sediadaem outro Estado, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu:
“ICMS. MERCADORIA IMPORTADA. INTERMEDIAÇÃO TITULARIDADE DO TRIBUTO.
O Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços cabe ao Estado em que localizado o porto de desembarque e o destinatário da mercadoria, não prevalecendo a forma sobre o conteúdo, no que procedida a importação por terceiro consignatário situado em outro Estado e beneficiário de sistema tributário mais favorável.”(RE 268.586-1-SP)
Uma leitura mais apressada deste precedente poderia levar a crer que os Ministros teriam alterado sua posição, passando a adotar o entendimento de que o ICMS é devido ao Estado onde estiver localizado o porto de desembarque e o estabelecimento destinatário dos bens importados.
Contudo, da leitura do acórdão se extrai que, no caso:
O Ministro Marco Aurélio entendeu que as operações de importação realizadas pela empresa importadora localizada no Estado do Espírito Santo e a alienação posterior à empresa localizada em São Paulo eram simuladas, para aproveitamento dos benefícios fiscais decorrentes do sistema Fundap. Vale dizer, inferiu que o acordo comercial formalizado entre a importadora capixaba e a empresa paulista era uma ficção jurídica com o único objetivo de obter as vantagens fiscais do sistema Fundap existente no Estado do Espírito Santo.
O Ministro Cezar Peluso entendeu que a empresa importadora do Espírito Santo atuou como mera consignatária na importação destinada à empresa paulista a título de compradora da mercadoria no exterior, agindo como representante dos interesses desta e consignatária do bem importado. Concluiu, em razão disso, que o “destinatário” era, sem sombra de dúvidas, para efeitos de incidência do ICMS na importação, a empresa paulista, e que o Estado de São Paulo teria legitimidade constitucional para exigir o ICMS incidente na importação. Este entendimento do Ministro foi fundado no contrato firmado entre a importadora e a empresa paulista, onde está claro que:
a) a empresa paulista manteve contatos com os fornecedores no exterior dos produtos importados, contratando diretamente com eles o preço em moeda estrangeira, a forma de pagamento e todas as demais condições para a efetivação de sua compra, inclusive vias de transporte e porto/aeroporto de destino das mercadorias no Brasil;
b) a empresa paulista assumiu total e irrestrita responsabilidade por todos os dados, elementos e informações por ela levantados e trazidos para a efetivação das importações, bem como por todas as imposições de ordem fiscal e parafiscal decorrentes da operação;
c) a importadora do Espírito Santo apenas processou os pedidos de importação encaminhados pela empresa paulista, efetivando as importações na qualidade de consignatária;
d) a empresa paulista comprometeu-se a responder por todos os custos que direta ou indiretamente incidiriam sobre as compras do exterior e/ou importações das mercadorias, tais como o preço a ser pago ao exportador pela compra das mercadorias, os tributos em geral incidentes sobre a operação, frete, seguro, armazenagem, transporte, taxas e emolumentos do DECEX, desembaraço aduaneiro e demais despesas pertinentes à operação;
e) a empresa paulista adiantou à importadora todas as despesas relacionadas com as importações das mercadorias, inclusive as taxas e emolumentos da CACEX, frete, armazenagem, tributos em geral, desembaraço aduaneiro, liquidação do saque ao exportador, corretagem e demais despesas incorridas.
Da análise dos precedentes do Supremo Tribunal Federal é possível concluir que aquela Corte, em síntese, tem entendido que:
a) Quando a Constituição menciona que cabe o ICMS ao Estado onde estiver o estabelecimento do destinatário da mercadoria, nada mais faz do que afirmar que o referido imposto é devido ao Estado em que se situe o estabelecimento importador;
b) No caso da importação, o critério de entrada física da mercadoria previsto na LC 87/96 perde significado se ela não ocorrer no estabelecimento destinatário da mercadoria, ou seja, no estabelecimento do importador, e somente prevalece enquanto não contrariar o critério jurídico indicado pela Constituição Federal;
c) A venda posterior da mercadoria, ainda que em operação triangular, ou seja, com entrega direta ao comprador não interfere na sujeição ativa, que continua sendo do Estado onde tem domicílio o importador;
d) O importador é aquele que efetivamente adquire a mercadoria no exterior de uma empresa estrangeira (efetua o pagamento com seus recursos, negocia com a empresa alienígena, etc.); e
e) Quando uma trading participa de uma operação de importação agindo como mera consignatária e representante dos interesses do encomendante dos bens importados, sem assumir qualquer responsabilidade pela negociação, pagamento dos produtos, impostos e demais custos, o ICMS é devido ao Estado onde se situa o adquirente da mercadoria, vale dizer, o destinatário das mercadorias importadas.
A Autora é advogada, sócia da Nasrallah Advocacia, formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós Graduada em Direito Tributário pelo IBET – USP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT, Integrou a Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/SP em 2018/2019. Membro da Associação dos Advogados de São Paulo. Atua no contencioso judicial e administrativo e na consultoria tributária e é consultora CEOlab.