Estabelece o artigo 98 do Código Tributário Nacional, que “os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha.” Este dispositivo do CTN tem sido objeto de diversos estudos e debates na área tributária, sendo a sua aplicação extremamente controvertida, em especial quando os tratados internacionais entram em conflito com as leis internas (leis de âmbito nacional).
Muito já se escreveu sobre o tema e a doutrina costuma apontar três critérios para a solução de conflitos: (i) o da hierarquia, segundo o qual, a norma de hierarquia superior prevalece sobre a inferior, (ii) o da especialidade, segundo o qual a norma mais específica prevalece sobre a mais genérica, (iii) o critério temporal, segundo o qual a norma mais nova prevalece sobre a mais antiga.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal a matéria foi abordada inúmeras vezes. No RE 460.320 há um voto interessantíssimo do Ministro Relator Gilmar Mendes que revisitou toda questão avaliando o artigo 98 do CTN sob perspectiva atual considerando a globalização na economia.
Eis algumas conclusões do Ministro:
. Os acordos internacionais “demandam um extenso e cuidadoso processo de negociação, com participação não só de diplomatas, mas de funcionários das respectivas administrações tributárias, de modo a conciliar interesses e a concluir instrumento que atinja os objetivos de cada Estado, com o menor custo possível para sua respectiva receita tributária”;
. No atual contexto deve ser privilegiado o cumprimento dos acordos internacionais, visto que há crescente intensificação das relações internacionais, da interdependência entre as nações, das possibilidades de retaliação, da rapidez do acesso às informações, inclusive no que se refere ao cumprimento dos tratados internacionais firmados, e do retorno dos efeitos negativos do descumprimento dos acordos;
. O Estado Constitucional exige a boa-fé e a segurança dos compromissos internacionais, ainda que contrarie a legislação infraconstitucional interna, principalmente quanto ao direito tributário, cujo desatendimento põe em risco os benefícios de cooperação articulada no cenário internacional.
. Admitir a preponderância da legislação interna, mesmo que posterior aos tratados internacionais, em detrimento a estes últimos desestimula o novo ingresso de capitais externos, gera insegurança dos investidores, dificulta a negociação de novos tratados, além de dar ensejo a retaliações em outras formas de cooperação;
. O descumprimento unilateral de acordo internacional contraria os princípios internacionais fixados pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, a qual, em seu art. 27, determina que nenhum Estado “pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”;
. A possibilidade de afastar a aplicação de normas internacionais tributárias por meio de legislação interna está ultrapassada com relação às exigências de cooperação, boa-fé e estabilidade do atual cenário internacional;
. O tratado internacional não precisa ser aplicado na estrutura de lei ordinária ou lei complementar, nem ter status paritário com qualquer deles, pois tem fundamento específico na Constituição Federal, com requisitos materiais e formais peculiares.
Vale dizer, nesse Recurso Extraordinário, prevaleceu o princípio da especialidade segundo o qual, a norma especial (tratado internacional) afasta a norma geral (lei interna).
Pois bem, recentemente o STJ reanalisou a questão no Recurso Especial nº 1.618.897 – RJ, relatado pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho e decidiu que devem prevalecer os tratados internacionais sobre as normas brasileiras internas e se inspirou no voto do Ministro Gilmar Mendes, acima comentado.
No mencionado Recurso Especial nº 1.618.897 – RJ, o STJ analisou a convenção entre Brasil e a França para Evitar a Dupla Tributação (Decreto nº 70.506, de 12 de maio de 1972).
O caso concreto trata de uma empresa, constituída em conformidade com as leis da França, sem sede no Brasil, tendo como atividade principal a prestação de serviços técnicos de construção e manutenção de cabos submarinos, cuja contrapartida de pagamento será feita por empresa brasileira. Segundo o recurso, o Brasil não deveria reter IRRF sobre as remessas feitas à França, por violar o art. 7o. da Convenção para Evitar a Dupla Tributação firmada entre o Brasil e França, que estabelece:
“Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua atividade desse modo, seus lucros poderão ser tributados no outro Estado, mas unicamente na medida em que forem imputáveis a esse estabelecimento permanente.”
O STJ decidiu que a empresa francesa não deve sofrer a retenção de imposto de renda sobre a remuneração por ela percebida, nos termos que dispõe a Convenção firmada entre a República Federativa do Brasil e a França, pois não tem sede no Brasil
Para dirimir quaisquer dúvidas, o STJ também definiu o conceito de lucro para fins de tratados internacionais da seguinte forma: “o termo lucro da empresa estrangeira deve ser interpretado não como lucro real, mas como lucro operacional, como o resultado das atividades, principais ou acessórias, que constituam objeto da pessoa jurídica, aí incluído, obviamente, o rendimento pago como contrapartida de serviços prestados”
Segue ementa do julgado:
“TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. PREVALÊNCIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS TRIBUTÁRIOS SOBRE A NORMA DE DIREITO INTERNO. CONCEITO DE LUCRO. INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA. EMPRESA COM SEDE NA FRANÇA E SEM ESTABELECIMENTO PERMANENTE INSTALADO NO BRASIL. CONVENÇÃO CELEBRADA ENTRE A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E A FRANÇA, PROMULGADA PELO DECRETO 70.506/1972. COBRANÇA DE TRIBUTO QUE DEVE SER EFETUADA NO PAÍS DE ORIGEM (FRANÇA). RECURSO ESPECIAL DA SOCIEDADE EMPRESARIAL PROVIDO.
- A jurisprudência desta Corte Superior orienta que as disposições dos Tratados Internacionais Tributários prevalecem sobre as normas jurídicas de Direito Interno, em razão da sua especificidade, ressalvada a supremacia da Carta Magna. Inteligência do art. 98 do CTN. Precedentes: REsp. 1.272.897/PE, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 9.12.2015; REsp. 1.161.467/RS, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJe 1.6.2012.
- A Convenção Brasil-França, objeto do Decreto 70.506/1972, dispõe que os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só são tributáveis neste mesmo Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado por meio de um estabelecimento permanente aí situado.
- O termo lucro da empresa estrangeira deve ser interpretado não como lucro real, mas como lucro operacional, como o resultado das atividades, principais ou acessórias, que constituam objeto da pessoa jurídica, incluído, o rendimento pago como contrapartida de serviços prestados.
- Parecer do MPF pelo conhecimento e provimento do recurso.
- Recurso Especial da ALCATEL-LUCETN SUBMARINE NETWORKS S.A. provido para assegurar o direito da recorrente de não sofrer a retenção de imposto de renda sobre a remuneração por ela percebida, nos termos que dispõe a Convenção firmada entre a República Federativa do Brasil e o França”.
(REsp 1.618.897 – RJ, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, julgado em 19 de maio de 2020)
A Autora é advogada, sócia da Nasrallah Advocacia, formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós Graduada em Direito Tributário pelo IBET – USP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário – IBDT, Integrou a Comissão de Direito Aduaneiro da OAB/SP em 2018/2019. Membro da Associação dos Advogados de São Paulo. Atua no contencioso judicial e administrativo e na consultoria tributária e é consultora CEOlab.
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